terça-feira, 29 de setembro de 2009

"Diário"

"A morte é séria, realmente. Mas a vida é mais. Não se pode comparar a gravidade de perder o jogo numa só cartada inconsciente, com a de passar anos e anos a tentar em vão todos os números da roleta, roído pela consciência permanente da derrota."

domingo, 27 de setembro de 2009

"Quatro Argumentos Para Acabar Com A Televisão"

"A convicção de que vivemos numa sociedade democrática baseia-se em podermos votar nos candidatos a cargos públicos, de quando em quando. Contudo, o direito ao voto nas eleições legislativas ou presidenciais adquire pouco ou nenhum significado se comparado com a nossa falta de controlo sobre as invenções tecnológicas que afectam mais a natureza da existência humana do que qualquer líder político. Sem esse controlo dos mecanismos tecnológicos a democracia não passará de uma farsa. Não conseguindo nós sequer pensar em libertar-nos de uma tecnologia, ou fazer com que seja banida, incorremos numa atitude de passividade e impotência semelhante à imposta por um regime ditatorial. O facto de o ditador não ser uma pessoa só torna a situação mais complexa. Apesar de muitos as utilizarem em benefício próprio, as tecnologias dominantes, e não as pessoas, tornam-se no verdadeiro ditador."

"A Arte de Amar"

"Irás ter com ela quando o quiser; desaparecerás, se vires que te evita; um homem bem educado não é nunca importuno. (...) E não te envergonhes de suportar as ofensas, os seus golpes, nem mesmo de beijar os seus delicados pés."

sábado, 26 de setembro de 2009

"Discurso Sobre a Servidão Voluntária"

"O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância.
Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça."

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

"Quatro Argumentos Para Acabar Com A Televisão"

"Uma conhecida jornalista de São Francisco, Susan Halas, pôs assim o problema: «Não existem notícias, existem os media». (...) os noticiários condensam o (...) acontecimento em trinta segundos, eliminando grande parte da informação indispensável para que qualquer indivíduo, com uma razoável capacidade de análise, possa compreender os acontecimentos abordados. Apenas apresentam o esqueleto dos acontecimentos, facultando à percepção e entendimento dos telespectadores meros retalhos da realidade."

"Diário"

"Os deuses são realmente respostas transitórias às nossas perguntas eternas."

"Diário"

"(...) o tempo e o afastamento degradaram nas memórias enfrentadas a natureza e significação dos factos evocados. Onde o meu interlocutor dizia preto, dizia eu branco; onde eu dizia amarelo, dizia ele vermelho.
Fernando Pessoa, depois de ter ouvido da boca dos protagonistas duas descrições diferentes do mesmo acontecimento, feitas com critérios idênticos, fala da confusão que lhe fez aquela «existência dupla da verdade». Assim nos sucedeu, também. Contávamos, e pasmávamos ambos das mútuas versões que ouvíamos de cada sucesso. Não havia sincronização possível no diálogo. (...) Sem o parecer, quanto mais divergíamos no relato dos episódios, mais longe íamos ficando um do outro. Éramos dois cronistas antagónicos e obstinados de determinadas aventuras, e não dois sentimentais associados a elas. E dois desconhecidos, quando à despedida nos abraçámos."

"Diário"

"E acabo por concluir que o melhor ainda é ficar-se a gente pela crua sinceridade do silêncio."

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

"Discurso Sobre a Servidão Voluntária"

"Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará.
Os médicos aconselham a não se tocar com a mão nas chagas incuráveis; não é, pois, sensato que eu dê conselhos a um povo que há muito perdeu a consciência e cuja doença, uma vez que ele já não sente dor, é evidentemente mortal. Temos, antes, de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural."

"Discurso Sobre a Servidão Voluntária"

"Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem humidade e alimento, se torna ramo seco e morto."

"Discurso Sobre a Servidão Voluntária"

"Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermos-nos dele.
Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo.
Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma.
Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio.
São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir.
É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.
Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem?
Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre.
Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?"

"Comentários Sobre a Sociedade do Espectáculo"

"Já não se pede à ciência que compreenda o mundo ou o melhore nalguma coisa. Pede-se-lhe que justifique instantaneamente tudo o que faz."

"Comentários Sobre a Sociedade do Espectáculo"

"(...) Mac Luhan, o primeiro apologista do espectáculo, que parecia o imbecil mais convencido do seu século, mudou de opinião ao descobrir finalmente, em 1976, que «a pressão dos mass media empurra para o irracional», e se tornaria urgente moderar-lhe o uso."

"A Arte da Guerra"

"Por críticas que possam ser as situações e as circunstâncias em que te encontres, não desesperes; é nas ocasiões em que tudo é temível, que nada há que temer; é quando se está rodeado de todos os perigos, que não há que temer nenhum; é quando se está sem nenhum recurso, que há que contar com todos; é quando se está surpreendido, que é preciso surpreender o inimigo."

"A Sociedade do Espectáculo"

"A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo."

"A Sociedade do Espectáculo"

"(...) a realidade surge no espectáculo, e o espectáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente."

"Bureau Of Public Secrets"

«Uma revolução anti-hierárquica deve ser uma "conspiração aberta".»

"Bureau Of Public Secrets"

«Começando pelo aspecto político, podemos distinguir de forma aproximada cinco graus de "governo":

1-Liberdade sem restrição
2-Democracia directa
a) consenso
b) domínio da maioria
3-Democracia delegada
4-Democracia representativa
5-Ditadura aberta de uma minoria

A presente sociedade oscila entre os pontos 4 e 5, isto é, entre governo minoritário declarado e governo minoritário disfarçado, ambos camuflados por uma fachada simbólica de democracia. Uma sociedade livre eliminaria os pontos 4 e 5, e progressivamente reduziria a necessidade dos pontos 2 e 3 ...

Nas democracias representativas as pessoas abdicam do seu poder ao eleger governantes.»
"Cada época tem o seu vocabulário, a fim de exorcizar os fantasmas que a contrariam."

"A Arte de Amar"

"O amor é uma espécie de serviço militar. Afastai-vos, cobardes! Não são os pusilânimes que hão-de guardar os estandartes. No campo do prazer, o que é permitido é a noite, o Inverno, são longas caminhadas, caminhos agrestes. Será a miúdo necessário que suportes a chuva caindo do céu e também pode acontecer que, morto de frio, tenhas de dormir sobre a terra nua."

domingo, 20 de setembro de 2009

"Agonia"

"Canto a pedir socorro.
A noite que atravesso é negra, e tenho medo."

"Desacerto"

"Ternura em movimento,
Vamos os dois — o sol e a sombra juntos,
O futuro e o passado no presente.
O que te digo é urgente;
O que tu me respondes não tem pressa.
A minha voz acaba na vertente
Onde a tua começa.

Apertamos as mãos enamoradas.

Uma quente, outra fria…
E sorrimos às flores que no caminho
Nos olham com seus olhos perfumados.
Tu, de pura alegria;
Eu, de melancolia…
Um a cuidar, e o outro sem cuidados.

Canta um ribeiro ao lado.

Ambos o ouvimos, mas diversamente.
O que em ti é promessa de frescura
À terra da semente semeada,
Em mim é já certeza de secura
De raiz arrancada.

Almas amantes e desencontradas

Na breve conjunção
Que tiveram na vida,
Levo de ti um halo de pureza,
Deixo-te a inquietação duma lembrança…
E é inútil pedir mais à natureza,
Surda ao meu desespero e à tua confiança."

"Saberás que não te amo e que te amo"

"Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quanto te amo."

"Puedo escribir los versos más tristes esta noche"

"Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: «La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos.»

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo."

"Adeus"

"É um adeus…
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus…
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer
A humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de lírico pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada."

"Diário"

"Subo ao alto da serra, olho em redor, e até me parece impossível que nas pupilas tão pequenas do homem possam caber certas grandezas. Mas cabem. E mais: é nelas que tais grandezas adquirem sentido."

"Diário"

"Vi as coisas. O que não sei é se teria visto a alma das coisas."

"Diário"

"O desânimo consciente pode muito, mas, felizmente, a coragem inconsciente pode mais. Deito-me desiludido, e o subconsciente continua a fazer versos na escuridão."

"Diário"

"O pensamento entra na retorta e deixa de fora o instinto, fiel ao chouto da terra. Por mais cera científica que meta nos ouvidos, continuo a ouvir os protestos conservadores da espécie, que teme no meu corpo uma aventura em que vislumbra, aterrada, a sombra do seu aniquilamento."

"O Triunfo dos Porcos"

"Camaradas: qual é o sentido desta nossa vida? Encaremos a realidade: a nossa vida é miserável, penosa e curta. Nascemos, somos alimentados apenas com a comida necessária para nos mantermos vivos, e aqueles de entre nós que têm capacidade para isso, são forçados a trabalhar até ao limite das suas forças; e, no preciso momento em que a nossa utilidade chega ao fim, somos abatidos com terrível crueldade. (...) A vida de um animal é angústia e escravidão; esta é a verdade nua e crua. (...) Então por que é que continuamos nestas condições miseráveis? Porque a quase totalidade do produto do nosso trabalho nos é roubado pelos seres humanos. (...) O homem é o único verdadeiro inimigo que temos. Retirando o Homem da cena, a causa principal da fome e do excesso de trabalho desaparecerá para sempre."

"Diário"

"Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos. No outro, oiço-lhe a música; neste, sinto-lhe as vibrações."

"Diário"

"Só há uma solução quando se vive num ambiente medíocre, entre medíocres: recusar a mediocridade. Recusá-la sistematicamente, permanentemente, teimosamente, como o estômago recusa certos alimentos que lhe repugnam. Chegar mesmo à heroicidade de ter diante dos olhos interlocutores medíocres, e falar-lhes com a aplicação de quem estivesse a conversar com sábios da Grécia. (...) O problema é de pura higiene mental."

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

"Diário"

"Abandono-me à volúpia dum encontro meramente físico com a realidade. Fragas, matas, rios e ribeiros, tudo entra em mim como a luz pelas vidraças. Entra e cabe. Não há imagens no mundo que saciem a pura transparência. Nada entendo, e nada quero entender. E sinto paz. A paz de ser uma simples coisa permeável entre coisas impermeáveis."

"Hamlet"

"(...) para bem conhecer um homem, mister será conhecermo-nos bem a nós."

"Hamlet"

"(...) porque sei que o amor no tempo tem início,
E porque vejo, em muitos passos probatórios,
Que a sua chama e fogo o tempo lhe rareia.
No interior da mesma chama do amor habita
Uma espécie de mecha ou pavio que a reduz;
E nada se mantém eterno em plena condição,
Pois a plenitude, contraindo uma pleurisia,
Morre do próprio excesso. O que queremos fazer
No instante devemos fazer; pois esse «queremos»
Altera-se, e tem tantos abatimentos e demoras
Como há línguas, como há acidentes e mãos,
E esse «devemos» é como um suspiro pródigo
Que no aliviar magoa."

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

"Quatro Argumentos Para Acabar Com A Televisão"

"A televisão transforma a natureza passiva dos ambientes artificiais numa natureza activa. Ao contrário dos edifícios e das máquinas, a televisão entra literalmente nos seres humanos, nas nossas casas, nas nossas mentes, nos nossos corpos, tornando possível reestruturar os processos humanos a partir do interior."

"Quatro Argumentos Para Acabar Com A Televisão"

"Os situacionistas têm razão. Ao comprarmos um produto, pagamos para reaver os nossos próprios sentimentos. Tornámo-nos, por conseguinte, criaturas que somos as próprias mercadorias que compramos. Somos o próprio produto que pagamos e toda a nossa vida se reduz a servir este ciclo. Vida e mercadoria atingem fusão absoluta; o último estádio do movimento inexorável de conversão da matéria-prima em objecto comercial com «valor». A publicidade consiste no meio de disseminação interna deste estranho processo."

"A Arte de Amar"

"É útil que existam deuses, e, por tal razão, cremos que existem (...)."

"A Arte de Amar"

"Nos prados amenos a fêmea chama o touro com os seus mugidos; é sempre a fêmea quem, com os seus relinchos, chama o garanhão de cascos córneos."

"Hamlet"

"ROSENCRANTZ
Não vos entendo, senhor.

HAMLET
Fico contente por isso. Discursos engenhosos cochilam em ouvido tolo."

"Hamlet"

"RAINHA
Ah, Hamlet, partiste-me o coração em dois.

HAMLET
Deitai fora a metade pior
E vivei mais pura com a outra metade."

sábado, 12 de setembro de 2009

"Diário"

"A angústia é o rosto sério da esperança."

"Diário"

"Era jovem, e os jovens merecem que os adultos não lhes antecipem as amarguras. A vida se encarregará de lhes mostrar que toda a experiência é uma cicatriz onde a ferida continua a doer."

"Diário"

"Tenho passado a vida a dar esperança aos outros. São horas de começar a repartir alguma comigo..."

"Diário"

"No auge da maior paixão, a lucidez corta-me as asas. E caio envergonhado dos píncaros da certeza no raso chão da dúvida."

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

"A Arte de Amar"

"Mas deves saber que a luz das lâmpadas causa muitas vezes equívocos: não deves confiar muito nela. A noite e o vinho são maus elementos para julgar a beleza. (...) A noite e a obscuridade dissimulam os defeitos e encobrem indulgentemente as imperfeições, de modo que qualquer mulher parece bela. Para apreciares a beleza das pedras preciosas ou da lã vermelha, o dia é o melhor meio; toma-o também por conselheiro para julgares as feições e as linhas do corpo."

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

"Hamlet"

"Perdi nos últimos tempos, por que razão não sei, toda a minha alegria; abandonei todo o tipo de exercício, e, com efeito, qualquer coisa me turva de tal modo a disposição que esta excelente moldura, a terra, me parece um promontório estéril, este dossel sobre todos excelente, o ar, vede bem, este férvido firmamento envolvente, este tecto majéstico chispado de fogos de ouro, parece-me apenas uma congregação de vapores pestilenta e vil. Que obra de arte é o homem, que nobre na razão, que infinito nas faculdades, no movimento e na forma que admirável e preciso, como um anjo nos actos, ou um deus na apreensão: a beleza do mundo, a paragona dos animais - e no entanto para mim, que é esta quintessência do pó? Os homens não me encantam - nem as mulheres, embora com esse sorriso o queiras insinuar."

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

"A Educação do Estóico"

"Não há maior tragédia do que a igual intensidade, na mesma alma ou no mesmo homem, do sentimento intelectual e do sentimento moral. Para que um homem possa ser distintivamente e absolutamente moral, tem que ser um pouco estúpido. Para que um homem possa ser absolutamente intelectual, tem que ser um pouco imoral. Não sei que jogo ou ironia das coisas condena o homem à impossibilidade desta dualidade em grande. Por meu mal, ela dá-se em mim. Assim, por ter duas virtudes, nunca pude fazer nada de mim. Não foi o excesso de uma qualidade, mas o excesso de duas, que me matou para a vida."

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

"A Arte de Amar"

"Enquanto és livre e vais onde te agrada sem estares sujeito a nenhum jugo, escolhe aquela a quem possas dizer:«Só tu me agradas.» Mas ela não te cairá aos pés como se descesse do céu no meio da atmosfera transparente; tens que buscar a mulher que fascinará os teus olhos."

"A Arte de Amar"

"Antes de tudo, soldado que pela primeira vez enfrentas combates dos quais nada sabes, preocupa-te com encontrar o objecto do teu amor. Em seguida, dedica os teus esforços a impressionar a jovem que te agradou e, em terceiro lugar, esforça-te por fazeres durar o amor."

"O Animal Moribundo"

"-Depois de ti nunca mais tive um namorado ou um amante que amasse o meu corpo tanto como tu o amaste.
-Tiveste namorados?
Lá estava eu de novo, com a mesma conversa. Esquece os namorados. Mas não conseguia.
-Tiveste, Consuela?
-Tive, mas não muitos.
-Dormiste regularmente com homens?
-Não. Numa base regular, não.
-Como era o teu emprego? Não houve ninguém no teu emprego que se apaixonasse por ti?
-Apaixonavam-se todos.
-Eu compreendo isso. Mas, e depois? Eram todos homossexuais? Não conheceste homens heterossexuais?
-Conheço, conheci, mas não prestavam.
-Não prestavam porquê?
-Masturbavam-se apenas no meu corpo.
-Oh, isso é lamentável. É estúpido. É idiota.
-Mas tu amavas o meu corpo. E eu sentia-me orgulhosa dele."

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

"Eu próprio sou"

"Eu próprio sou
O Universo onde estou"

"Não basta abrir a janela"

"Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela."

"Medo da morte"

"Medo da morte?
Acordarei de outra maneira,
Talvez corpo, talvez continuidade, talvez renovado,
Mas acordarei.
Se até os átomos não dormem, por que hei-de ser eu só a dormir?"

"A Passagem das Horas"

"Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos,
Só assim — ai de mim! —, só assim se pode viver.
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco — não sei qual — e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo."

"A Passagem das Horas"

"A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.
Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim
e ti.
Assim fico, fico… Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica…"

"A Passagem das Horas"

"Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas…
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca…
Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?"

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

"A Passagem das Horas"

"Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente."

"A Passagem das Horas"

"Todos os amantes beijaram-se na minh’alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos."

"A Passagem das Horas"

"Caem as folhas secas no chão irregularmente,
Mas o facto é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
Há só um caminho para a vida, que é a vida…"

"A alma humana é porca como um ânus"

"A alma humana é porca como um ânus
E a Vantagem dos caralhos pesa em muitas imaginações."

"O Duplo"

"Depois do primeiro ataque de pasmo apavorado, o sangue subiu à cabeça do senhor Goliádkin. Com um gemido e um ranger de dentes, deitou as mãos à cabeça a ferver, sentou-se no seu rebolo e começou a pensar... Mas não conseguia encadear os pensamentos. Relampejavam-lhe na cabeça umas caras, acontecimentos havia muito esquecidos, ora nítidos, ora vagos, melodias de estúpidas canções antigas... A angústia, a angústia, essa, então, era desmedida! «Meu Deus, meu Deus! - pensou o nosso herói, como se acordasse por momentos, reprimindo o choro -, dá-me firmeza de espírito nos infinitos abismos das minhas desgraças! (...)»."