quarta-feira, 28 de outubro de 2009

"O Dom"

"(...) estas são as minhas recordações mais precoces, as mais próximas da fonte original. A sonda do meu pensamento volta-se muitas vezes para essa fonte original, para esse nada em sentido contrário. Assim, o estado nebuloso do recém-nascido parece-me sempre uma lenta convalescença após uma terrível doença, e, quando forço a memória até ao limite para gozar dessa escuridão e utilizar as suas lições para me preparar para a escuridão que há-de vir, o afastar-me da não existência primeira transforma-se numa via de acesso a essa não existência primeira; mas, ao virar a minha vida ao contrário, de modo que o nascimento passa a ser a morte, não consigo ver, no limite dessa morte em sentido contrário, nada que corresponda ao terror sem limites de que se diz que mesmo um velho centenário conhece quando se defronta com o fim certo; nada, salvo talvez as supramencionadas sombras que, enguendo-se lá do fundo quando a vela sai do quarto (com a sombra da maçaneta de cobre do pé esquerdo da cama a passar velozmente como uma cabeça negra que incha à medida que se desloca), ganham os seus lugares habituais por cima da minha caminha de criança (...).

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