sábado, 18 de agosto de 2012

"Operário Em Construção"

"Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De facto, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse facto extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

No dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se de súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras se seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fracturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção."

"Discurso Sobre O Filho-Da-Puta"

I
"O pequeno filho da puta
é sempre
um pequeno filho da puta;
mas não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho da puta.
no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
grandes e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho da puta.
de resto,
os filhos da puta
não se medem aos
palmos,diz ainda
o pequeno filho da puta.
o pequeno
filho da puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho da puta.
no entanto,
o pequeno filho da puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho da puta.
todos os grandes
filhos da puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
dentro do
pequeno filho da puta
estão em ideia
todos os grandes filhos da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
o pequeno filho da puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho da puta.


é o pequeno filho da puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
de resto,
o pequeno filho da puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho da puta:
o pequeno filho da puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho da puta.


II
o grande filho da puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho da puta,
e não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.


no entanto,
há filhos da puta
que já nascem grandes
e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho da puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o grande filho-da-puta.
o grande filho da puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho da puta.
por isso
o grande filho da puta
tem orgulho em ser
o grande filho da puta.
todos
os pequenos filhos da puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
dentro do
grande filho da puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos da puta,
diz o
grande filho da puta.
tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos da puta,
diz
o grande filho da puta.
o grande filho da puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho da puta.


é o grande filho da puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa para ser
o pequeno filho da puta,
diz o
grande filho da puta.
de resto,
o grande filho da puta
vê com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho da puta:
o grande filho da puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja,
o grande filho da puta."

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

"Livro Do Desassossego"

"Todos me apontam o dedo do fundo das suas almas. (...) Caminho entre fantasmas inimigos que a minha imaginação doente imagina e localiza em pessoas reais. Tudo me esbofeteia e me escarnece."

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Zero ou O

Numa ocasião, quando sonhava dormindo, lembro-me de ver e falar com pessoas (algumas conhecidas e muitas inventadas) que não me faziam sentir nada de bom, como se houvesse no espaço que fica entre uma interacção e outra, uma estranheza essencial/básica. 
Fiquei então a fazer uma qualquer tarefa, da qual não me recordo e, estando sozinha, senti um chamamento, qualquer coisa que me impelia a ir. E fui. Corri para «lá». Reconheci num tecto branco e diagonal uma mancha vermelha, levei imediatamente a minha mão para ela, toquei, deixei-me estar com a mão ali. Surgiu-me então uma sequência numérica: -1 +1 -1 +1 -1 +1 -1 +1... (até ao infinito). 
Acordei, pensei, estudei, procurei. A recta... o ponto zero... a conta que feita numa vez ou até ao infinito dá sempre zero... o O do Bion... a circularidade... o começo, o desenvolvimento e o fim... o início, de novo... a possibilidade... o nada... a criação... a verdade última...

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

"Obras"

"O Estado garante sempre o que quer: a uns, a riqueza, a outros, a pobreza; a uns, a liberdade assente na propriedade, a outros, a escravatura, consequência fatal da sua miséria; e obriga os miseráveis a trabalharem sempre e a matarem-se para aumentarem e protegerem esta riqueza dos ricos, que é a causa da sua miséria e escravidão. Esta é a verdadeira natureza e missão do Estado."

"Idée Générale De La Révolution Au XIXe Siècle"

"Ser governado é ser vigiado, inspeccionado, espiado, dirigido, legislado, regulamentado, cercado, endoutrinado, convencido, controlado, avaliado, censurado, comandado por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude... Ser governado é ser, em cada gesto, em cada transacção, em cada movimento, notado, registado, recenseado, taxado, timbrado, medido, cotado, cotizado, patenteado, licenciado, autorizado, anotado, admoestado, impedido, reformado, emendado e corrigido. É, sob pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser colocado em posição de contribuição, abusado, resgatado, explorado, monopolizado, concessionado, pressionado, mistificado, roubado; depois, à mínima resistência, à primeira queixa, reprimido, emendado, vilipendiado, vexado, acossado, injuriado, desancado, desarmado, agarrado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, ainda por cima, gozado, ridicularizado, ultrajado e desonrado. Este é o governo, esta é a sua justiça, esta é a sua moral! E dizer que, entre nós, há democratas que pensam que o governo é bom, socialistas que apoiam em nome da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, esta ignomínia..." 

terça-feira, 31 de julho de 2012

"Livro Do Desassossego"

"Uma das formas de saúde é a doença. Um homem perfeito, se existisse, seria o ser mais anormal que se poderia encontrar."

terça-feira, 12 de junho de 2012

"Pais E Filhos"

"Os nossos altos dignitários gostam de desconcertar os seus subordinados; os meios a que recorrem para conseguir esse objectivo são bastante diversificados."

sábado, 28 de abril de 2012

"Livro Do Desassossego"

"Não me submeto ao Estado nem aos homens, resisto inertemente."

"Livro Do Desassossego"

"Talvez tudo seja símbolo e sombra, mas não gosto de símbolos e não gosto de sombras. Restitui-me o passado e guarda a verdade. Dá-me outra vez a infância e leva Deus contigo."

sexta-feira, 13 de abril de 2012

"Livro Do Desassossego"

"O que é certo é que as coisas que mais amamos, ou julgamos amar, só têm o seu pleno valor real quando simplesmente sonhadas."

"Livro Do Desassossego"

"Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim."

"Livro Do Desassossego"

"A vida (...) é a busca do impossível através do inútil. Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-lo através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto; ascendamos, porém, à consciência de que nada buscamos que possa obter-se, de que por nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade."

quinta-feira, 5 de abril de 2012

"Livro Do Desassossego"

"Cada palavra falada nos trai. A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros."

quarta-feira, 4 de abril de 2012

"Jacques O Fatalista"

"Quiseram persuadir-me de que o seu amo e Desglands se tinham apaixonado pela mulher dele. Não sei nada disso; mas tenho a certeza de que à noite ele dizia para consigo mesmo: «Jacques, se está escrito lá em cima que hás-de ser cornudo, por mais que faças hás-de sê-lo; se, pelo contrário, está escrito que não o serás, por mais que eles façam não o serás; por isso, dorme, amigo.» E adormecia."

terça-feira, 3 de abril de 2012

"Cândido"

"- Mas com que fim foi então criado o mundo? - inquiriu Cândido.
- Para nos irritar - respondeu Martin."

"Cândido"

"Nunca vi cidade que não desejasse a ruína da cidade vizinha, nem família que não pretendesse o extermínio de outra família. Por todo o lado os fracos abominam os poderosos, diante dos quais rastejam, e os poderosos tratam-nos como rebanhos, de que vendem a lã e a carne. Um milhão de assassinos arregimentados, correndo de um lado para o outro da Europa, exercem disciplinada e ordenadamente o assassínio e a pilhagem como modo de vida, pois não encontram profissão mais honesta. E nas cidades onde parece reinar a paz e as artes florescem, os homens são devorados pela inveja e por mais cuidados e inquietações do que os habitantes flagelados pelo cerco da sua cidade. (...)
- E contudo o bem existe - afirmou Cândido.
- Pode ser - contrapôs Martin -, mas eu não o conheço."

sábado, 31 de março de 2012

"Contos A Ninon"

"Flor-das-Águas era filha dum raio de sol e duma pérola de orvalho. Era tão imaculadamente bela que o beijo dum namorado deveria matá-la; exalava um perfume tão doce que o beijo dos seus lábios deveria matar o namorado.
(...)
Vivia descuidada, só conhecendo, da terra, sua mãe, a gota de orvalho; e, do céu, unicamente seu pai, o raio de sol. Sentia-se amada pela onda que a baloiçava e pelo ramo que lhe dava sombra. Tinha mil namorados, mas, amantes, nem um.
Flor-das-Águas não ignorava que devia morrer de amor; comprazia-se mesmo com este pensamento e vivia à espera da morte. E era sorrindo que esperava o namorado."

terça-feira, 27 de março de 2012

"Jacques O Fatalista"

"O AMO - Jacques, sois um bárbaro, tendes um coração de bronze.
JACQUES - Não, senhor, não, eu tenho sensibilidade, mas reservo-a para melhor ocasião."

segunda-feira, 26 de março de 2012

"Jacques O Fatalista"

"Jacques perguntou ao amo se não reparara que, fosse qual fosse a miséria das pessoas do povo, mesmo não tendo pão para comerem, todas tinham cães. E se não reparara que esses cães, todos ensinados a fazer habilidades, a andar em duas patas, a dançar, a trazer coisas à mão, a saltar para o rei, para a rainha, a fazerem-se de mortos, haviam sido transformados por essa educação nos animais mais infelizes do mundo. Donde concluiu que todo o homem queria mandar noutro, e, como o animal se encontrava na sociedade imediatamente abaixo da classe dos últimos cidadãos comandados por todas as outras classes, eles tinham um animal para terem também em quem mandar. «Bem, disse Jacques, cada um tem o seu cão. O ministro é o cão do rei, o secretário de Estado é o cão do ministro, a mulher é o cão do marido, ou o marido é o cão da mulher (...)."

domingo, 25 de março de 2012

Prefácio de "Cândido"

"No Cândido, como observa Pierre Castex, «Voltaire quer fazer-nos reconhecer que, pelo menos ao nível do homem, a existência é absurda e que é inútil tentar justificá-la. Deste ponto de vista, a sua atitude é extremamente moderna»."

Prefácio de "Cândido"

"A contradição aparente entre a existência de um Deus infinitamente bom, de quem logicamente era de esperar a criação de um mundo bom e feliz, e a chocante verificação quotidiana do mal físico, com o seu cortejo de sofrimentos e catástrofes, e do mal moral, nas suas diversas concretizações (ódio, injustiça, opressão do homem pelo homem), constitui um enigma que filósofos e teólogos têm, desde tempos remotos, tentado explicar."

terça-feira, 13 de março de 2012

"Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos"

"Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos
nos olhos dos cães. Os vitelos, ao espreitar a luz pelos sexos
das mães, afogavam-se em lama, no meio dos sambos. As paredes
das casas diluíam-se em nata e os oleiros desistiram de encomendar
a sua obra a Deus. Enormes cuidados foram inventados
para proteger o fogo nos altares e as crianças adoptaram a nudez.
As termiteiras deixaram de existir e as formigas aladas
perderam as asas. Os pés dos mais velhos fenderam-se em chagas
e as mamas das virgens, mal eram tocadas, colavam-se aos dedos
como cinza húmida. Os lábios dos sexos das mulheres paridas
inchavam carnudos de uma carne branca e os ventres pendiam
como fruta mole.
Naquele ano a chuva foi excessiva
e os horizontes deixaram de existir.

Choveu por muito tempo até os cães perderem todo o pêlo
e as cabeleiras se destacarem como algas podres. O rei de Jau
ficou colado ao trono e ao boi sagrado cresceram-lhe os olhos,
que depois cegaram. As sementes grelaram nos celeiros
e essa semente assim era servida aos homens e daí lhes ocorreu
um tal vigor que os seus sexos cresceram desmedidos
e os homens vacilaram, tendo-os nas mãos e mudos de fascínio.

A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos buracos
e vieram alongar-se ao pé dos paus, mantendo com esforço
as cabeças erguidas. Nas terrinas do leite vicejavam musgos
e o leite das vacas alterou-se em soro, a coalhar na urina.
Naquele ano a chuva choveu tanto que até nos areais cresceram
talos e as enxurradas produziram peixe e até o ferro se lavou
sozinho e os diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas
de moer farinha. As próprias aves morreram quase todas
e apenas se salvaram as de penas brancas, que a distância atraiu,
depois comeu.

E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais
que se animaram e até pedras comuns a transmudar-se em carne.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu todo
o sentido. As gargantas entupiram-se de limos

e as testas que os velhos pousavam nas mãos fundiam-se aos dedos
e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os corpos
e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães.
Só as bocas teimavam em manter-se abertas e quando mais tarde
a chuva parou, das bocas saíram grossas aves negras
que abalaram logo daquelas paragens. E a seca voltou
e o mundo secou. A carne antiga a dar-se agora em terra,
os fósseis em pedra e as ramas em húmus.
E os passos poliram pouca a pouco as formas.

Naquele ano a chuva choveu tanto
que a memória nunca mais teve sentido."

"Dois"

"Longe
muito longe
lá bem distante das coisas humanas e reais
todos os dias me esperas
fiel
respondendo à minha voz com o teu sorriso
quebrando o meu falar com os teus beijos
suavizando o meu viver com o teu pão

Longe
lá muito longe
na hora difícil do meu repouso
sempre tu
simplificando com um gesto simples
a complexidade brutal dos problemas de todos os meus irmãos

Sempre tu
longe
fiel às promessas de um amor humano
tendo no coração as coisas que não mais serão
tendo no corpo o cheiro da terra virgem regada com as lágrimas dos que ninguém conhece

E longe
lá muito longe
bem distante das coisas humanas e reais
o teu gesto de adeus a perder-se na distância"

domingo, 26 de fevereiro de 2012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"A Sonata De Kreutzer"

"Sentia que a minha fúria era enorme, que devia estar assustador, e isso agradava-me. Com o braço esquerdo acotovelei-a com toda a força, em cheio na cara. Soltou um grito e largou-me o braço. Já ia persegui-lo, a ele, mas lembrei-me de que seria ridículo correr descalço atrás do amante da minha mulher, e eu não queria ser ridículo, queria ser pavoroso."

"A Sonata De Kreutzer"

"A música faz-me esquecer de mim próprio, da minha verdadeira situação, transporta-me para outro espaço qualquer que não é o meu: a música parece que me faz sentir o que na verdade não sinto, que me faz compreender o que não compreendo, parece que, com a música, posso fazer o que na verdade não posso. (...)
A música transfere-me de imediato para o estado de espírito do músico quando a compôs. Fundo-me na alma dele e, juntamente com ele, transporto-me de um estado para o outro, mas não sei por que o faço."

"A Sonata De Kreutzer"

"A cidade é melhor para as pessoas infelizes. Na cidade, uma pessoa pode viver cem anos e não reparar que já morreu há muito e apodreceu. Não temos tempo de pensar em nós, estamos totalmente ocupados. Negócios, relações públicas, saúde, artes, saúde e educação das crianças, receber as visitas destes e daqueles, visitar outros, é preciso ver a actriz tal, ouvir o cantor ou a cantora tal. (...) e no entanto a vida é vazia, vazia."

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

"A Sonata De Kreutzer"

"Emancipa-se a mulher nos cursos superiores e nas instituições públicas, mas olha-se para ela como um instrumento de prazer. (...)
O liceu e os cursos superiores não podem mudar esta situação. Apenas poderá mudá-la a alteração da atitude dos homens para com as mulheres e da atitude das mulheres para consigo próprias."

domingo, 19 de fevereiro de 2012

"A Sonata De Kreutzer"

"Trata-se do que me aconteceu, a mim, e também a noventa e nove por cento dos homens (...); trata-se de uma coisa terrível: não perdi a inocência por ter cedido à sedução natural de uma certa mulher. Não, não me seduziu mulher nenhuma, apenas caí porque o meio que me rodeava via naquela queda ou um acto legal e benéfico para a saúde, na opinião de alguns, ou o mais natural divertimento de um jovem, não só perdoável mas até inocente. Eu nem sequer me apercebia de que havia ali uma queda, e comecei simplesmente a entregar-me àquela coisa que é em parte prazer, em parte necessidade, como me foi sugerido, numa determinada idade; comecei a entregar-me então a essa depravação, tal como comecei a beber e a fumar. Mesmo assim, naquela primeira queda havia algo de especial e comovedor. Lembro-me de que, logo a seguir, naquele mesmo quarto, senti uma grande tristeza, tão grande que me apetecia chorar, chorar a minha inocência perdida, a minha atitude para com a mulher irreparavelmente estragada. (...) Tornei-me no que se chama um devasso. Ora, ser devasso é um estado físico, semelhante ao do morfinómano, do alcoólico, do fumador. Tal como o morfinómano, o alcoólico e o fumador não são pessoas normais, um homem que conheceu sexualmente várias mulheres para seu prazer deixa de ser normal para se tornar um homem estragado para sempre, o devasso. (...) O devasso pode abster-se, pode lutar; mas jamais terá uma atitude simples, clara, pura... fraterna para com as mulheres. (...) fiquei assim para sempre, e foi isso que me levou à perdição."

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"Alice Do Outro Lado Do Espelho"

"Numa tarde branda de Julho,
Desliza um barco calmamente
Sob o céu resplandecente.

E esta história é a minha oferta
Às três crianças de antigamente,
Escutando de ouvidos alerta.

Julho congelou com o frio do Outono!
Há muito que o céu se toldou
e que o eco da memória se calou.

Todavia, Alice, de passos incertos,
Vagueia ainda nos campos desertos
Nunca vista por olhos despertos.

E eu hei-de continuar a contar
A todas as crianças que virão
A história desse outro Verão.

Crianças do País das Maravilhas,
Que levam os dias sonhando.
Que passam os dias cantando.

Deslizando pela memória
Do seu passado risonho,
Que é a vida, senão sonho?"

"Alice Do Outro Lado Do Espelho"

"Minha criança tão pura e querida
Com os teus olhos voltados para o céu!
Embora o tempo seja breve, e tu e eu
Apartados estejamos por meia vida,
Com o teu sorriso aceitarás certamente
Este conto de fadas de presente.

Nunca mais vi o teu olhar radiante,
Nem ouvi o teu sorriso cristalino.
E sei que será teu destino
Esqueceres-te de mim doravante.
Basta-me agora que queiras receber
O conto de fadas que te venho oferecer.

Um conto de tempos que já lá vão,
Quando brilhavam os dias de Verão.
Um canto singelo, para acompanhar
O ritmo do nosso remar
Cujos ecos perduram na lembrança,
Porquanto o olvido queira vingança.

Anda, escuta, antes que o pavor,
Com sua voz diabólica,
Force ao sono opressor
Uma donzela melancólica!
Somos velhos que gostam de brincar
E temem a hora de ir deitar.

Lá fora, o gelo e a neve impiedosos,
E a raiva dos ventos furiosos.
Cá dentro, o fogo que nos olhos dança
E a felicidade de criança.
Que te livre, assim, este conto terno
Da dura prisão do Inverno.

E, ainda que brisas sombrias
Perpassem pela memória
Da saudade dos nossos dias,
Dos nossos tempos de glória,
Não hão-de trespassar de agonia
O prazer da nossa história."

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Prefácio de "Jacques O Fatalista"

"Trata-se de amar as palavras naquilo que elas têm de desajustamento em relação à realidade, e de compreender que essa realidade se transforma à medida que nós usamos as palavras em configurações diferentes. Trata-se de perceber que as palavras não servem apenas para referenciar a realidade, mas também, e sobretudo, para gerir distâncias (é essa a verdadeira definição da retórica) e para aproximar ou afastar as pessoas."