domingo, 28 de fevereiro de 2010

"Salmo"

"Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção
a ti.

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-do-céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho."

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

"O Jogador"

"(...) nestes últimos tempos, tenho experimentado verdadeira repugnância em conciliar os meus pensamentos e os meus actos com qualquer critério moral. Sinto-me arrastado noutra direcção..."

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

"Loucura..."

"A vida faz doer. E a morte?"

"Loucura..."

"Para morrer só, falta-me a coragem... tenho medo..."

"Loucura..."

"Tu não podes avaliar o tamanho do meu suplício... Não podes... A tua alma não compreende a minha... nem a tua, nem a de ninguém. Tenho horror à vida... meu amigo, tenho horror à vida... Tenho horror à morte; menos horror talvez... mais horror... ignoro... Não posso viver, não posso viver... Não quero morrer... não quero morrer... É horrível... horrível... Que ando a fazer neste mundo? O mesmo que as outras pessoas, bem sei... Ah! mas é justamente isso que me aterra, que me horroriza... Vivo como todos, à espera da velhice, percebes? À espera da morte, compreendes?"

"Loucura..."

"(...) ainda anteontem me perguntou (...) se eu me queria suicidar com ele nessa mesma noite, morrer feliz nos seus braços!... «Brincas - murmurei - mas com essas coisas não se brinca...» - Pelo contrário, falo muito a sério» - retorquiu. E era tão dura a expressão do seu rosto, tão desabitual o brilho dos seus olhos; que o sorriso me expirou nos lábios. (...) Ele acrescentou: - «Não queres... não me compreendes... És como toda a gente... Tens amor à vida... Lastimo-te... Não serei eu que te obrigarei a mudar de ideias. Pelo meu lado - juro-te - não estou disposto a sacrificar a ninguém - nem mesmo a ti - a liberdade do meu pensamento, das minhas acções.» Em seguida calou-se."

"Loucura..."

"- Falaste verdade? Aborreceste-te nesse baile?...
- Aborreci. Eu aborreço-me sempre em todos...
- Então para que vais a essas estúpidas reuniões?
- Por causa do meu ofício. Preciso observar. Aborreço-me por amor da literatura...
- Ah! - tornou Raúl, voltando à sua ideia fixa - gostava tanto de me aborrecer... Era tempo que roubava ao Tempo..."

"Loucura..."

"A escultura faz corpos: eu faço corpos. A literatura faz almas: tu fazes almas. Se pudéssemos conjugar as nossas duas artes faríamos vida. Felizmente é impossível..."

"Loucura..."

"- Meu caro, todos nós temos um ideal. O meu, não te digo qual é. Se o confessasse, deixaria de ser ideal... Todavia, afianço-te que nele não há nenhuma mulher... não há mesmo ninguém, senão eu. Sou um bicho do mato... Ah! não sentir ninguém perto de nós... fazer só o que a nossa vontade exige... Parece impossível que se ame a vida familiar... A família! Que náusea!...
- Mas sem uma família constituída, não pode haver felicidade completa! - insurgia-me eu. Raúl, pensativo, em vez de sustentar a sua opinião, respondia:
- De acordo. Por isso mesmo é que me repugna a vida familiar. Eu não quero ser feliz... Ser feliz, seria para mim a maior das infelicidades!...
Pobre amigo... pobre louco..."

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

"Correspondência com F. Pessoa"

"Tenho chegado mesmo a suspeitar nestes últimos tempos se de facto - já estarei louco. Parece-me que não. Mas o certo é que, mais uma vez, e positivamente, se modificou alguma coisa dentro de mim. O mundo exterior não me atinge, quase - e, ao mesmo tempo, afastou-se para muito longe o meu mundo interior. Diminuiu, diminuiu muito, evidentemente, a minha psicologia. Sou inferior - é a triste verdade - de muito longe inferior ao que já fui. (...) Estou muito pouco interessante. E não prevejo o meu regresso a mim."

"Correspondência com F. Pessoa"

"Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partam de encontro ao muro espesso do beco sem saída. E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser! (...) EU SOU DAQUELES QUE VÃO ATÉ AO FIM. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa."

"O Jogador"

"E hoje, mais uma vez, pergunto a mim mesmo: «Será que a amo?» E uma vez mais não pude achar resposta, ou melhor, pela centésima vez respondi que a odiava, sim, que a odiava. Houve momentos, sobretudo ao acabarmos cada uma das nossas conversas, em que eu daria metade da vida para a estrangular!"

"Livro Do Desassossego"

"Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos."

domingo, 14 de fevereiro de 2010

"Suplemento À Viagem De Bougainville Ou Diálogo Entre A E B Sobre O Inconveniente De Ligar Ideias Morais A Certas Acções Físicas Que As Não Comportam"

"Há menos inconveniente em ser louco entre loucos do que em ser sábio a sós."

"Suplemento À Viagem De Bougainville Ou Diálogo Entre A E B Sobre O Inconveniente De Ligar Ideias Morais A Certas Acções Físicas Que As Não Comportam"

"Ora, como quereis que se observem leis quando estas se contradizem? Percorrei a história dos séculos e das nações tanto antigas como modernas, e achareis os homens submetidos a três códigos, o código da natureza, o código civil e o código religioso, e obrigados a infringir alternadamente esses três códigos que nunca estiveram de acordo (...)."

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

"Livro Do Desassossego"

"És a única forma que não raia tédio porque és sempre mudável com o nosso sentimento, porque, como beijas a nossa alegria, embalas a nossa dor, e ao nosso tédio, és-lhe o ópio que conforta e o sono que descansa, a morte que cruza e junta as mãos."

"Livro Do Desassossego"

"Tu não existes, eu bem sei, mas sei eu ao certo se existo? Eu, que te existo em mim, terei mais vida real do que tu, do que a vida morta que te vive?"

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

"Suplemento À Viagem De Bougainville Ou Diálogo Entre A E B Sobre O Inconveniente De Ligar Ideias Morais A Certas Acções Físicas Que As Não Comportam"

"A vida selvagem é tão simples, e as nossas sociedades são máquinas tão complicadas! O taitiano toca a origem do mundo, e o europeu a sua velhice. O intervalo que o separa de nós é maior do que a distância que vai da criança que nasce ao homem decrépito. Nada entende dos nossos usos, das nossas leis, ou não vê nisso mais do que entraves encobertos sob cem formas diversas, entraves que só podem excitar a indignação e o desprezo de um ser no qual o sentimento de sua liberdade é o mais profundo dos sentimentos."

"Suplemento À Viagem De Bougainville Ou Diálogo Entre A E B Sobre O Inconveniente De Ligar Ideias Morais A Certas Acções Físicas Que As Não Comportam"

"Toda a guerra nasce de uma pretensão comum à mesma propriedade. O homem civilizado tem uma pretensão em comum com o homem civilizado à posse de um campo cujas duas extremidades cada um deles ocupa, e o campo torna-se um assunto de discórdia entre eles."

sábado, 6 de fevereiro de 2010

"Livro Do Desassossego"

"Às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos ao fim duma alameda abandonada.
Colhi para escrevê-lo a alma de todas as flores e dos momentos efémeros de todos os cantos de todas as aves, teci eternidade e estagnação."

"O Dom"

"Sei que não há nada a esperar deste lado, pois não há uma única conversa em que ela não diga que, embora eu seja um homem de bem, sou apesar de tudo demasiado desajeitado e quase repelente. Compreendo que não deveria tentar ganhar seja o que for, pois de qualquer modo estou mais ligado a Nikolai Gavrilovitch do que a ela. Mas ao mesmo tempo, sou incapaz de a deixar em paz."

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

"O Dom"

"Os anos 50 estão agora no seu apogeu. Pode-se fumar na rua. Pode-se usar barba. (...) Uma nova heresia apareceu: o niilismo. «Uma doutrina escandalosa e imoral que rejeita tudo que não possa apalpar-se», diz Dahl com um arrepio, na sua definição dessa estranha palavra (em que «niil», nada, corresponde de qualquer modo a «material»)."

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

"Noites Brancas"

"Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Será pouco, mesmo que tenha de dar para toda a vida de um homem?..."

"Noites Brancas"

"(...) talvez estivesse a passar pela minha imaginação, tão desagradável e tristemente, toda a perspectiva do meu futuro, e eu me estivesse a ver agora como serei daqui a quinze anos, avelhentado, no mesmo quarto, com a mesma Matriona, a quem os anos não tornaram mais esperta."

"Noites Brancas"

"As minhas noites acabaram de manhã. O dia estava feio. Chovia uma chuva triste que batia nas minhas janelas; o quarto estava escuro, lá fora as nuvens cobriam todo o céu; a febre rastejava pelos meus membros."

"Noites Brancas"

"A mão dela tremeu na minha; olhei para ela... Apoiou-se em mim ainda mais.
Nisto passou a nosso lado um jovem. Parou de repente, olhou para nós com atenção e, logo depois, avançou alguns passos. O meu coração tremeu...
- Nástenka! - disse eu a meia voz -, quem é, Nástenka?
- É ele! - respondeu ela num sussurro, apertando-se ainda mais contra mim, palpitando ainda mais... Eu mal me aguentava nas pernas.
- Nástenka! Nástenka! És tu! - ouviu-se atrás de nós, e o jovem deu alguns passos na nossa direcção...
Meu Deus, que grito! Como ela estremeceu! Como se arrancou das minhas mãos e voou ao encontro dele!... E eu a olhar para eles, mais morto do que vivo."

"Noites Brancas"

"Durante todo o ano eu amei-o, a ele, e juro por Deus que nunca lhe fui infiel, nem em pensamento. Mas ele desprezou isso, gozou comigo - que Deus o acompanhe! Mas ele atingiu-me, insultou o meu coração. Eu... eu já não o amo, porque só posso amar aquele que é generoso, que me compreenda, que seja nobre; porque eu própria sou assim, e ele não é digno de mim - muito bem, Deus o acompanhe. Foi melhor ele ter feito o que fez do que eu vir a ser defraudada mais tarde nas minhas esperanças ao saber como ele é na realidade... Está bem acabou-se! Sabe-se lá, meu bom amigo - continuou ela a apertar-me a mão -, sabe-se lá, talvez todo o meu amor tenha sido um engano dos sentimentos, da imaginação, talvez tudo tivesse começado por traquinice, na brincadeira, por estar a ser constantemente vigiada pela avó? Talvez seja outro que eu tenha de amar, e não ele, não esse homem, mas outro, que tenha pena de mim e... e... Pronto, deixemo-nos disso - interrompeu-se Nástenka, arfando de emoção (...)."