quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

"Sincronicidade"

“O exemplo que vos proponho é o de uma jovem paciente que se mostrava inacessível, psicologicamente falando, apesar das tentativas de parte a parte neste sentido. A dificuldade residia no fato de ela pretender saber sempre melhor as coisas do que os outros. Sua excelente formação lhe fornecia uma arma adequada para isto, a saber, um racionalismo cartesiano aguçadíssimo, acompanhado de uma concepção geometricamente impecável da realidade. Após algumas tentativas de atenuar o seu racionalismo com um pensamento mais humano, tive de me limitar à esperança de que algo inesperado e irracional acontecesse algo que fosse capaz de despedaçar a retorta intelectual em que ela se encerrava. Assim, certo dia eu estava sentado diante dela, de costas para a janela, a fim de escutar a sua torrente de eloquência. Na noite anterior ela havia tido um sonho impressionante no qual alguém lhe dava um escaravelho de ouro (uma jóia preciosa) de presente. Enquanto ela me contava o sonho, eu ouvi que alguma coisa batia de leve na janela, por trás de mim. Voltei-me e vi que se tratava de um inseto alado de certo tamanho, que se chocou com a vidraça, pelo lado de fora, evidentemente com a intenção de entrar no aposento escuro. Isto me pareceu estranho. Abri imediatamente a janela e apanhei o animalzinho em pleno voo, no ar. Era um escarabeídeo, da espécie da cetonia aurata, o besouro-rosa comum, cuja cor verde-dourada torna-o muito semelhante a um escaravelho de ouro. Estendi-lhe o besouro dizendo-lhe: ‘está aqui o seu escaravelho’. Este acontecimento abriu a brecha desejada no seu racionalismo, e com isto rompeu-se o gelo de sua resistência intelectual. O tratamento pôde então ser conduzido com êxito”.

"Bion: O Zero da Experiência"

“Bion (1973) propõe então que seja dado um nome ao que não é possível conhecer, empregando um termo derivado da matemática - o Zero. Na verdade, o signo que emprega é "O", podendo ser lido como letra ou algarismo: em inglês, o som é o mesmo.
(...)
Entretanto, como intermediário entre os números positivos e negativos, ou como o marco da interseção entre abcissa e ordenada nos eixos cartesianos, sugere a origem, a matriz de onde os números podem surgir.
(...)
(...) essa multiplicidade que se recusa a uma simplificação fornece uma ténue imagem do que seja a experiência do 0: o inefável que escapa a toda e qualquer definição, apreensão, limite. Não se pode conhecer o Zero, só se pode vivê-lo.
(...) o Zero constitui a Verdade de cada momento. Os processos habituais de conhecimento não conseguem chegar até lá. (...) o Zero é um TODO cuja expressão global escapa a nossa percepção analítica. Dele emanam, contudo, aspectos que evoluem até se tornarem captáveis.
(...)
(...) qualquer ciclo de transformação tem como ponto de partida o 0.
(...)
O contato direto com 0 também supõe um "estado negativo de mente" em que a atividade positiva de investigação se substitui por uma atividade receptiva de estar de acordo e comunhão, quando se deixa de querer "saber sobre" e se fica "sendo" 0.
(...)
Se o contato com 0 supõe supressão de memória, desejo e compreensão, estes são novamente necessários quando se trata de transformar depois este contato em um conhecimento. É assim que se torna possível ter vivências com aguda sensibilidade e no entanto não poder aprender da experiência. Isto se explica por essa maior captação, que exige um continente adequado, elástico e flexível (...).
(...)
O movimento de "Transformação em 0" apresenta características de revelação integradora, articulada a partir da própria mente, emergindo um sentido que não é imposto "de fora" mas que abarca sensações antigas e presentes, assim como lhe revela seu próprio funcionamento mental. Não se trata de uma compreensão teórica, alcançada através de uma distância proporcionadora de perspectiva. Trata-se, ao invés, de uma experiência da natureza do êxtase – o que inclui um clima intensamente emocional - que já não se pode esquecer ou ignorar, pois passa a participar da constituição de sua mente, numa identidade com o revelado: "sendo" 0.”

"Hymn to Life" (1882)

“Surely, a friend loves a friend the way
That I love you, enigmatic life —
Whether I rejoiced or wept with you,
Whether you gave me joy or pain.
I love you with all your harms;
And if you must destroy me,
I wrest myself from your arms,
As a friend tears himself away from a friend’s breast.

I embrace you with all my strength!
Let all your flames ignite me,
Let me in the ardor of the struggle
Probe your enigma ever deeper.

To live and think millennia!
Enclose me now in both your arms:
If you have no more joy to give me —
Well then—there still remains your pain.”

“Ah, Os Dias Felizes”

“WINNIE - (...) A gravidade, Willie, tenho a impressão de que já não é o que era, tu não? Sim, cada vez mais a impressão de que se eu não estivesse segura (...) estaria simplesmente a flutuar em pleno azul. E de que um dia a terra acabará por ceder, de tanto esticar, sim, rebenta a toda a volta e deixa-me sair. Nunca tens a sensação de ser como que sugado, Willie? Não sentes, por vezes, a necessidade de te agarrares, Willie? Willie.

WILLIE - Sugado?

WINNIE - Sim, meu querido, lá para cima, até ao azul celeste, como um fio de teia de aranha. (...)”
“Tenta manter-te num estado consciente e deixa as coisas tomarem o seu percurso natural. Então a mente tornar-se-á calma em qualquer ambiente, como um límpido lago na floresta. Todos os tipos de animais raros e maravilhosos virão beber ao lago e verás claramente a natureza de todas as coisas. Verás muitas coisas estranhas e maravilhosas nascerem e morrerem, mas estarás sereno.”
“Every session attended by the analyst must have no history and no future. What is 'known' about the patient is of no further consequence: it is either false or irrelevant. If it is 'known' by patient and analyst, it is obsolete... The only point of importance in any session is the unknown. Nothing must be allowed to distract from intuiting that. In any session, evolution takes place. Out of the darkness and formlessness something evolves.”
«One day, someone showed me a glass of water that was half full. And he said, "Is it half full or half empty?" So I drank the water. No more problem.»
“When she does not find love, she may find poetry. Because she does not act, she observes, she feels, she records; a color, a smile awakens profound echoes within her; her destiny is outside her, scattered in cities already built, on the faces of men already marked by life, she makes contact, she relishes with passion and yet in a manner more detached, more free, than that of a young man. Being poorly integrated in the universe of humanity and hardly able to adapt herself therein, she, like the child, is able to see it objectively; instead of being interested solely in her grasp on things, she looks for their significance; she catches their special outlines, their unexpected metamorphoses. She rarely feels a bold creativeness, and usually she lacks the technique of self-expression; but in her conversation, her letters, her literary essays, her sketches, she manifests an original sensitivity. The young girl throws herself into things with ardor, because she is not yet deprived of her transcendence; and the fact that she accomplishes nothing, that she is nothing, will make her impulses only the more passionate. Empty and unlimited, she seeks from within her nothingness to attain All.”

"Ítaca"

“Quando saíres a caminho de Ítaca,
faz votos para que seja longo o caminho,
cheio de aventuras, cheio de conhecimentos.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o zangado Poséidon não temas,
coisas assim no teu caminho não acharás nunca,
se o teu pensamento permanecer elevado, se emoção requintada o teu espírito e o teu corpo tocar.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o selvagem Poséidon não encontrarás,
se com eles não carregares na tua alma,
se a tua alma não os colocar à tua frente.
Faz votos para que seja longo o caminho.
Para que sejam muitas as manhãs de verão
nas quais com que contentamento, com que alegria entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para que páres em feitorias fenícias,
e para que adquiras as boas compras
coisas de nácar e coral, de âmbar e de ébano,
e essências de prazer de qualquer espécie,
as mais abundantes que puderes;
para que vás a muitas cidades egípcias,
para que aprendas e aprendas com os letrados.
Deves ter sempre Ítaca na tua mente.
A chegada ali é o teu destino.
Mas não apresses em nada a tua viagem. É melhor durar muitos anos;
e já velho fundeares na ilha,
rico do que ganhaste no caminho,
sem esperares que te dê Ítaca riquezas.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem Ítaca não terias saído ao caminho. Agora, já nada tem para te dar.
E se um tanto pobre a encontrares, Ítaca não te enganou. Sábio como te tornaste, com tanta experiência,
já compreenderás o que significam Ítacas.”

“Sísifo"

"Recomeça…
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És Homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.”

"Reflexão Nº 1"

"Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
É a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido."
"Some sort of pressure must exist; the artist exists because the world is not perfect. Art would be useless if the world were perfect, as man wouldn’t look for harmony but would simply live in it. Art is born out of an ill-designed world.”

"O Poeta em Lisboa"

"Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos,
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos."

"When You Are Old"

"When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars."