sábado, 31 de março de 2012

"Contos A Ninon"

"Flor-das-Águas era filha dum raio de sol e duma pérola de orvalho. Era tão imaculadamente bela que o beijo dum namorado deveria matá-la; exalava um perfume tão doce que o beijo dos seus lábios deveria matar o namorado.
(...)
Vivia descuidada, só conhecendo, da terra, sua mãe, a gota de orvalho; e, do céu, unicamente seu pai, o raio de sol. Sentia-se amada pela onda que a baloiçava e pelo ramo que lhe dava sombra. Tinha mil namorados, mas, amantes, nem um.
Flor-das-Águas não ignorava que devia morrer de amor; comprazia-se mesmo com este pensamento e vivia à espera da morte. E era sorrindo que esperava o namorado."

terça-feira, 27 de março de 2012

"Jacques O Fatalista"

"O AMO - Jacques, sois um bárbaro, tendes um coração de bronze.
JACQUES - Não, senhor, não, eu tenho sensibilidade, mas reservo-a para melhor ocasião."

segunda-feira, 26 de março de 2012

"Jacques O Fatalista"

"Jacques perguntou ao amo se não reparara que, fosse qual fosse a miséria das pessoas do povo, mesmo não tendo pão para comerem, todas tinham cães. E se não reparara que esses cães, todos ensinados a fazer habilidades, a andar em duas patas, a dançar, a trazer coisas à mão, a saltar para o rei, para a rainha, a fazerem-se de mortos, haviam sido transformados por essa educação nos animais mais infelizes do mundo. Donde concluiu que todo o homem queria mandar noutro, e, como o animal se encontrava na sociedade imediatamente abaixo da classe dos últimos cidadãos comandados por todas as outras classes, eles tinham um animal para terem também em quem mandar. «Bem, disse Jacques, cada um tem o seu cão. O ministro é o cão do rei, o secretário de Estado é o cão do ministro, a mulher é o cão do marido, ou o marido é o cão da mulher (...)."

domingo, 25 de março de 2012

Prefácio de "Cândido"

"No Cândido, como observa Pierre Castex, «Voltaire quer fazer-nos reconhecer que, pelo menos ao nível do homem, a existência é absurda e que é inútil tentar justificá-la. Deste ponto de vista, a sua atitude é extremamente moderna»."

Prefácio de "Cândido"

"A contradição aparente entre a existência de um Deus infinitamente bom, de quem logicamente era de esperar a criação de um mundo bom e feliz, e a chocante verificação quotidiana do mal físico, com o seu cortejo de sofrimentos e catástrofes, e do mal moral, nas suas diversas concretizações (ódio, injustiça, opressão do homem pelo homem), constitui um enigma que filósofos e teólogos têm, desde tempos remotos, tentado explicar."

terça-feira, 13 de março de 2012

"Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos"

"Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos
nos olhos dos cães. Os vitelos, ao espreitar a luz pelos sexos
das mães, afogavam-se em lama, no meio dos sambos. As paredes
das casas diluíam-se em nata e os oleiros desistiram de encomendar
a sua obra a Deus. Enormes cuidados foram inventados
para proteger o fogo nos altares e as crianças adoptaram a nudez.
As termiteiras deixaram de existir e as formigas aladas
perderam as asas. Os pés dos mais velhos fenderam-se em chagas
e as mamas das virgens, mal eram tocadas, colavam-se aos dedos
como cinza húmida. Os lábios dos sexos das mulheres paridas
inchavam carnudos de uma carne branca e os ventres pendiam
como fruta mole.
Naquele ano a chuva foi excessiva
e os horizontes deixaram de existir.

Choveu por muito tempo até os cães perderem todo o pêlo
e as cabeleiras se destacarem como algas podres. O rei de Jau
ficou colado ao trono e ao boi sagrado cresceram-lhe os olhos,
que depois cegaram. As sementes grelaram nos celeiros
e essa semente assim era servida aos homens e daí lhes ocorreu
um tal vigor que os seus sexos cresceram desmedidos
e os homens vacilaram, tendo-os nas mãos e mudos de fascínio.

A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos buracos
e vieram alongar-se ao pé dos paus, mantendo com esforço
as cabeças erguidas. Nas terrinas do leite vicejavam musgos
e o leite das vacas alterou-se em soro, a coalhar na urina.
Naquele ano a chuva choveu tanto que até nos areais cresceram
talos e as enxurradas produziram peixe e até o ferro se lavou
sozinho e os diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas
de moer farinha. As próprias aves morreram quase todas
e apenas se salvaram as de penas brancas, que a distância atraiu,
depois comeu.

E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais
que se animaram e até pedras comuns a transmudar-se em carne.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu todo
o sentido. As gargantas entupiram-se de limos

e as testas que os velhos pousavam nas mãos fundiam-se aos dedos
e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os corpos
e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães.
Só as bocas teimavam em manter-se abertas e quando mais tarde
a chuva parou, das bocas saíram grossas aves negras
que abalaram logo daquelas paragens. E a seca voltou
e o mundo secou. A carne antiga a dar-se agora em terra,
os fósseis em pedra e as ramas em húmus.
E os passos poliram pouca a pouco as formas.

Naquele ano a chuva choveu tanto
que a memória nunca mais teve sentido."

"Dois"

"Longe
muito longe
lá bem distante das coisas humanas e reais
todos os dias me esperas
fiel
respondendo à minha voz com o teu sorriso
quebrando o meu falar com os teus beijos
suavizando o meu viver com o teu pão

Longe
lá muito longe
na hora difícil do meu repouso
sempre tu
simplificando com um gesto simples
a complexidade brutal dos problemas de todos os meus irmãos

Sempre tu
longe
fiel às promessas de um amor humano
tendo no coração as coisas que não mais serão
tendo no corpo o cheiro da terra virgem regada com as lágrimas dos que ninguém conhece

E longe
lá muito longe
bem distante das coisas humanas e reais
o teu gesto de adeus a perder-se na distância"