segunda-feira, 31 de agosto de 2009

"O Duplo"

"No geral, pode dizer-se que os acontecimentos do dia anterior tinham abalado o senhor Goliádkin até aos alicerces. O nosso herói dormiu muitíssimo mal, ou seja, não teve um sono tranquilo, cinco minutos que fossem: como se um traquinas lhe tivesse metido cerdas cortadas na cama. Passou toda a noite numa espécie de modorra agitada, virando-se de um lado para o outro, gemendo, adormecendo por um minuto e logo acordando, tudo isso acompanhado por uma estranha angústia, por recordações vagas, por visões monstruosas - numa palavra, por tudo o que podia haver de mais desagradável..."

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

"Passagem das Horas"

"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero."

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

"Lembro-me bem do seu olhar"

"Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto...
Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossivel
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove."

"Vilegiatura"

"O sossego da noite, na vilegiatura no alto;
O sossego, que mais aprofunda
O ladrar esparso dos cães de guarda na noite;
O silêncio, que mais se acentua,
Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro...
Ah, a opressão de tudo isto!
Oprime como ser feliz!
Que vida idílica, se fosse outra pessoa que a tivesse
Com o zumbido ou murmúrio monótono de nada
Sob o céu sardento de estrelas,
Com o ladrar dos cães polvilhando o sossego de tudo!

Vim para aqui repousar,
Mas esqueci-me de me deixar lá em casa,
Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente,
A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir.

Sempre esta inquietação mordida aos bocados
Como pão ralo escuro, que se esfarela caindo.
Sempre este mal-estar tomado aos maus haustos
Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta.
Sempre, sempre, sempre
Este defeito da circulação na própria alma,
Esta lipotimia das sensações,
Isto...

(Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o dedal de uma outra.
Cismavas, olhando-me, como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter em que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo.
Olhaste conscientemente para mim, e disseste:
“Tenho pena que todos os dias não sejam assim" —
Assim, como aquele dia que não fora nada ...

Ah, não sabias,
Felizmente não sabias,
Que a pena é todos os dias serem assim, assim:
Que o mal é que, feliz ou infeliz,
A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo,
Consciente ou inconscientemente,
Pensando ou por pensar
Que a pena é essa...

Lembro fotograficamente as tuas mãos paradas,
Molemente estendidas.
Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti.
Que será feito de ti?
Sei que, no formidável algures da vida,
Casaste. Creio que és mãe. Deves ser feliz.
Porque o não haverias de ser?

Só por maldade...
Sim, seria injusto...
Injusto?

(Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava, sorrindo.)
....................................................................................
A vida...
Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar."

"Là-bas, Je Ne Sais Où..."

"Partir!
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!..."

"Ode Marítima"

"Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.
Senti de mais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim há só um vácuo, um deserto, um mar nocturno.
E logo que sinto que há um mar nocturno dentro de mim,
Sobe dos longes dele, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez, o vasto grito antiquíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
Voz de sereia longínqua chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos…"

terça-feira, 25 de agosto de 2009

"Pecado Original"

"Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?

Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?"

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

"Acaso"

"Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar."

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

"Pus-me preso às minhas ordens"

"Pus-me preso às minhas ordens
pra não me perder de mim."

"Insónia"

"Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam —
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam —
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo."

"Ode Marítima"

"Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!…
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar,
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!

Ah, seja como for, seja para onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar,
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se prà frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me!…
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!

Pensando nisto – ó raiva! pensando nisto – ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Subitamente, tremulamente, extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima."

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

"Love, Sex And Your Heart"

«Se eu respirar, morro.»

"Love, Sex And Your Heart"

"Na maioria dos casos, quando a pessoa não aguenta mais uma situação, tenta modificá-la. Todavia, a pessoa suicida acredita que a mudança é impossível porque o que deseja mudar é o comportamento dos outros em relação a ela. Quer uma aceitação e amor incondicionais, que quando criança não recebeu dos pais e sente que precisa ter. Quando esses presentes não lhe são dados, sente-se privada, carente, cheia de ira, ira que é ainda mais incentivada pela sensação de que os outros esperam dela certas coisas que ela não é capaz de satisfazer. Ao mesmo tempo, alimenta uma grande sensação de culpa pela sua raiva. Sentindo-se inadequada e incapaz de ser amada, dirige contra si mesma essa raiva. Ao destruir-se, está também a tentar magoar os outros."

"Love, Sex And Your Heart"

"(...) o impulso para se matar tem, como eixo fundamental, o desejo de matar outra pessoa, um dos progenitores, ou um antigo amor. A supressão desse desejo mediante a intervenção da culpa transforma o impulso assassino num movimento contra a própria pessoa."

"Love, Sex And Your Heart"

"Nada é mais assustador para uma criança do que a sensação de estar perdida e sozinha no mundo. Esse medo pode ser menor nos adultos mas nunca desaparece por completo. Nenhum animal sente a sua solidão exactamente dessa forma porque se sabe parte de uma ordem mais abrangente da natureza. O medo do homem vem da sua consciência de si como indivíduo e do facto de ser a mais desamparada e dependente das criaturas quando nasce. Um extenso período de amor maternal é o elemento vital à sobrevivência humana. (...) a perda desse amor é tão profunda, poderosa e ameaçadora que aqueles que passam por ela sentem desejo de morrer."

terça-feira, 18 de agosto de 2009

"Adiamento"

"Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...

Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir..."

"Lisbon Revisited" (1923)

"Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!"

"A Casa Branca Nau Preta"

"E eu, parado, mole, adormecido,
Tenho o mar embalando-me e sofro..."

"Love, Sex And Your Heart"

"(...) a raiva é uma reacção construtiva que inclui um certo afecto e uma certa medida de amor, ao passo que a ira contém um elemento de ódio. Quando expressamos raiva, implicitamente importamo-nos tanto com o outro que queremos recuperar a relação que permite a vivência de amor e amizade."

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

"Love, Sex And Your Heart"

"Não podemos controlar o outro e alegar amá-lo. Pela mesma lógica, não podemos dizer que amamos e que temos controlo sobre nós mesmos. O autocontrolo é um elemento importante apenas naquelas relações em que o poder é determinante. É uma pena que os pais usem tanto o poder - na forma de punições - na sua relação com os filhos.
No que tange a punições, é irrelevante se se trata da aplicada a criminosos ou a crianças; em ambos os casos, é um exercício de poder."

"Love, Sex And Your Heart"

"(...) a perda do amor na infância torna a pessoa insegura para o resto da vida (...). (...) essa insegurança está estruturada no corpo num nível inconsciente. Embora possa ter uma consciência geral de ser insegura, ela não vincula essa insegurança à garganta tensa nem ao peito cheio e nem sente, de facto, a extensão em que se ergue pelos ombros, em vez de deixar que as suas pernas e pés a sustentem.
Na qualidade de raízes funcionais, as nossas pernas e pés ligam-nos ao chão quando ficamos em pé ou nos mexemos (...). Pode até ter pernas fortes mas se forem tensas e rígidas, haverá uma diminuição da sensibilidade nesses membros e será difícil ter a sensação de que está com apoio. Essa rigidez deve ser entendida como uma defesa contra o medo de cair. Esse medo aparece primeiro quando o bebé sente que não tem apoio. Já adulto, sentirá - numa dimensão inconsciente - que, se cair, não só não terá ninguém lá para levantá-lo, como o próprio chão lhe fugirá dos pés."

"Love, Sex And Your Heart"

"Quando a pessoa experimenta a perda do amor, o sangue que tinha sido enviado para a superfície do corpo, na antecipação da proximidade (...), é repentinamente reenviado para o interior do corpo (...). (...) [o coração] fica sobrecarregado com mais sangue do que pode expelir (...). Aumenta a pressão e o coração dá a sensação de que vai explodir. Ao mesmo tempo, os músculos do peito contraem-se e (...) o corpo todo entra num estado de contracção em resposta à perda do amor. Isto é o oposto do estado de expansão que o amor produz."

"Love, Sex And Your Heart"

"O amor faz com que o coração bata mais depressa e fortemente, enviando mais sangue para a superfície do corpo, acendendo os olhos e carregando as zonas erógenas. No amor, a pessoa busca proximidade e contacto, antecipando o prazer. Se nada perturbar o relacionamento com o objecto amoroso, esse impulso é pleno e livre (...). Quando o contacto é estabelecido, existe uma sensação de prazer, contentamento e paz. A excitação cede, o coração aquieta-se e a pessoa está inundada por uma sensação de bem-estar. (...) [no caso da rejeição] Em vez de prazer, a pessoa sente dor; em vez de satisfação e realização, vazio; em vez de paz e contentamento depois da descarga da excitação há tensão e agitação."

"Dactilografia"

"Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhámos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substracto de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com os outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes.
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer.
Neste momento, pela náusea, vivo só na outra…"

domingo, 16 de agosto de 2009

"Ode Triunfal"

"À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocottes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes —
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,

Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes —
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!


Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ómnibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!"

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

"Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima"

"Vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir."

"Começo a conhecer-me. Não existo."

"Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim..."

"O ter deveres, que prolixa coisa!"

"Tenho desejo forte,
E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo."

"Assim Falou Zaratustra"

"Todas as dores estão encadeadas, unidas, tomadas nos laços do amor."

"Assim Falou Zaratustra"

"Não quero ser confundido nem misturado com esses pregadores da igualdade. Porque a justiça fala-me assim: 'Os homens não são iguais'."

"Assim Falou Zaratustra"

"Dormir não é uma arte fácil: é necessário preparar-se para isso, velando todo o dia.
Dez vezes durante o dia tens de te vencer: e isso provoca um bom cansaço e é um ópio para a alma.
Dez vezes por dia tens de te reconciliar contigo mesmo: porque a luta é amarga e quem não está em paz dorme mal.
É necessário que encontres dez verdades durante o dia, de contrário procurarás a verdade durante a noite e a tua alma ficará com fome.
Dez vezes por dia tens de rir e estar alegre, de contrário de noite serás perturbado pela tua digestão, essa causa de mal-estar."

"Assim Falou Zaratustra"

"A criança é inocência e esquecimento, um recomeço, um jogo, uma roda que se move por si mesma, um primeiro movimento, um 'sim' sagrado."

terça-feira, 11 de agosto de 2009

"Invocação Ao Meu Corpo"

"Separarmo-nos das coisas é saber que elas existem, ou seja, que as não somos, ou seja ainda que existimos em face delas, que somos em separado, com o encargo terrível de decidirmos de nós."

"The New Creatures"

"The theory is that birth is prompted
by the child's desire to leave the womb.
But in the photograph an unborn horse's
neck strains inward w/ legs scooped out.

From this everything follows:

Swallow milk at the breast
until there's no milk.

Squeeze wealth at the rim
until tile pools claim it.

He swallows seed, his pride
until w/ pale mouth legs

she sucks the root, dreading
world to devour child.

Doesn't the ground swallow me
when I die, or the sea
if I die at sea?"

"The Lords"

"You may enjoy life from afar. You may look at
things but not taste them. You may caress
the mother only with the eyes."

"Os Mestres"

"O voyeur é um masturbador, o espelho o seu emblema,
a janela a sua prece."

"The Lords"

"The voyeur, the peeper, the Peeping Tom, is a dark
comedian. He is repulsive in his dark anonymity,
in his secret invasion. He is pitifully alone.
But, strangely, he is able through this same silence
and concealment to make unknowing partner of
anyone
within his eye’s range. This is his threat and
power.

There are no glass houses. The shades are drawn

and “real” life begins. Some activities are impossible
in the open. And these secret events are the voyeur’s
game. He seeks them out with his myriad army of
eyes- like the child’s notion of a Diety who sees
all. “Everything?” asks the child. “Yes, every-
thing”, they answer, and the child is left to cope
with this divine intrusion."

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

"Não: devagar"

"Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade."

"O que há em mim é sobretudo cansaço"

"Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser..."

"Esta velha angústia"

"Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha.
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!"

"Alice no País das Maravilhas"

"Meu Deus! Como tudo é estranho, hoje! E ainda ontem as coisas corriam como de costume. Será que me modifiquei durante a noite? Ora deixa-me pensar: esta manhã quando me levantei eu era a mesma? Tenho a impressão de que me lembro de sentir-me um pouco diferente. Mas se não sou a mesma, quem sou eu afinal? Ah, esse é o grande quebra-cabeças?"

sábado, 8 de agosto de 2009

"A Morte de Ivan Ilitch"

"Nos últimos tempos a solidão em que se encontrava deitado com o rosto para as costas do sofá, essa solidão no meio de uma cidade populosa e dos seus numerosos conhecidos e da família - uma solidão que não podia haver maior em parte alguma: nem no fundo do mar nem em terra -, nos últimos tempos dessa horrível solidão vivia apenas com a imaginação no passado. Os quadros do seu passado surgiam-lhe um após o outro. Começava sempre por aquilo que era mais próximo no tempo, descia à infância e aí parava. (...) «Não devo pensar nisso... é demasiado doloroso», dizia a si mesmo e voltava para o presente. (...) E de novo parava na infância, e de novo era doloroso e Ivan Ilitch procurava expulsar esses pensamentos e pensar noutra coisa."

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

"Escuta, Zé Ninguém!"

"(...) viverás bem e em paz quando a vida significar para ti mais do que a segurança; o amor mais do que o dinheiro; a tua liberdade mais do que as linhas directivas do partido ou a opinião pública; quando o modo de estar no mundo de um Beethoven ou de um Bach for o tom habitual de toda a tua existência (...); quando a tua forma de pensar estiver de acordo, e não, como hoje, em discordância, com a tua forma de sentir; quando te for possível reconhecer os teus dotes a tempo e reconhecer a tempo o teu declínio, a tua velhice; quando te for possível viver o pensamento dos grandes homens em lugar dos crimes dos ditos grandes guerreiros; quando os professores dos teus filhos forem mais bem pagos do que os políticos; quando tiveres maior respeito pelo amor entre um homem e uma mulher do que por um certificado de casamento; quando puderes reconhecer os teus erros reflectindo a tempo, e não demasiado tarde, como o fazes hoje; quando sentires que o teu espírito se engrandece conhecendo a verdade e as formalidades te inspirem horror; quando comunicares directamente com os teus camaradas de trabalho, não mais tendo diplomatas por intermediários; quando a alegria que a tua filha adolescente possa encontrar no amor for também a tua alegria, e não motivo da tua cólera; quando souberes abanar apenas a cabeça nas mesmas circunstâncias em que outrora se castigavam as crianças por tocarem nos seus órgãos sexuais; quando finalmente a face humana do homem da rua puder expressar a alegria, a liberdade e a comunicação, não mais a tristeza e a miséria; quando os seres humanos não mais povoarem a terra com as suas ancas retraídas e rígidas e os seus órgãos sexuais enregelados."

terça-feira, 4 de agosto de 2009

"Escuta, Zé Ninguém!"

"Sentes-te infeliz e medíocre, repulsivo, impotente, sem vida, vazio. Não tens mulher e, se a tens, vais com ela para a cama só para provar que és «homem». Nem sabes o que é o amor. Tens prisão de ventre e tomas laxantes. Cheiras mal e a tua pele é pegajosa, desagradável. Não sabes envolver o teu filho nos braços, de modo que o tratas como um cachorro em quem se pode bater à vontade. A tua vida vai andando sob o signo da impotência, no que pensas, no teu trabalho. A tua mulher abandona-te porque és incapaz de lhe dar amor. Sofres de fobias, nervosismo, palpitações. O teu pensamento dispersa-se em ruminações sexuais. Falam-te de economia sexual. Algo que te entende e poderia ajudar-te. Que te permitiria viveres à noite a tua sexualidade e que te deixaria livre durante o dia para pensar e trabalhar. Que te faria ter nos braços uma mulher sorridente em vez de desesperada, ver os teus filhos sãos em vez de pálidos, amorosos em vez de cruéis. Mas quando ouves falar de economia sexual dizes: «O sexo não é tudo. Há outras coisas importantes na vida». És assim, Zé Ninguém."

"Escuta, Zé Ninguém!"

"Ergueste tu próprio os teus tiranos, e és tu quem os alimenta, apesar de terem arrancado as máscaras, ou talvez por isso mesmo. Eles mesmo te dizem clara e abertamente que és uma criatura inferior, incapaz de assumir responsabilidades, e que assim deverás permanecer. E tu nomeia-los novos «salvadores» e dás-lhes «vivas»."

"Não Destruas o Coração"

"Se soubesses como odeio o meu rosto. Traiu-me sempre, atraindo todo o mal sobre mim, falou sempre às minhas escondidas, prometendo a alegria e a serenidade que não sabia dar, o amor que não sabia guardar. Nunca teria falhado se o meu rosto não prometesse um paraíso que eu própria ignoro."

"Não Destruas o Coração"

"Tinha necessidade de ti, mas nunca se ama verdadeiramente aquilo de que se precisa."

"Não Destruas o Coração"

"Tu podes amar uma pessoa, uma ideia, uma coisa, mas, embora amando-a, não podes deixar de lançar sobre ela uma luz crua. E a essa luz, não há nada que não apareça deformado. É por isto que não encontras paz, que vives como vives, e que, como tu próprio vais sempre repetindo, te moves num mundo falso."

"O Diário de Anne Frank"

"... tenho fé no que há de bom no homem. Não me é possível construir a vida tomando como base a morte, a miséria e a confusão. Vejo o Mundo transformar-se, pouco a pouco, num deserto; ouço, cada vez mais forte, a trovoada que se aproxima, essa trovoada que nos há-de matar; sinto o sofrimento de milhões de seres e, mesmo assim, quando ergo os olhos para o céu penso que, um dia, tudo isto voltará a ser bom, que a crueldade chegará ao seu fim e que o Mundo virá a conhecer de novo a ordem, a paz, a tranquilidade."

"O Diário de Anne Frank"

"Tomam-nos a sério quando dizemos coisas para rir e riem-se de nós quando falamos a sério."

"O Diário de Anne Frank"

"O amor não é coisa que se possa pedir a alguém."

"O Diário de Anne Frank"

"Quanto a mim continuarei calada e fria e nunca terei medo da verdade."

"O Diário de Anne Frank"

"«O papel é mais paciente do que os homens». Era nisso que eu pensava muitas vezes quando, nos meus dias melancólicos, punha a cabeça entre as mãos sem saber o que havia de fazer comigo."

"O Diário de Anne Frank"

"Sinto-me como um pássaro a quem cortaram as asas e que bate, na escuridão, contra as grades da sua gaiola estreita."

"As Horas"

"Podia continuar a viver, podia fazer essa derradeira gentileza. Parada com a água pelos joelhos, decide não o fazer. As vozes estão ali, a dor de cabeça vem a caminho (...). Resolve insistir em que a deixem partir."

"As Ondas"

"E não importa o quão alto saltemos, acabamos sempre por voltar a mergulhar nas águas."

"As Ondas"

"É com alguma pena e inveja, e também com muito boa vontade, que te aperto a mão e te digo adeus."

"As Ondas"

"... sempre tão furtiva, sempre com o medo reflectido nos olhos, sempre à procura de uma coluna no deserto."

"As Ondas"

"Já vivi milhares de vidas. Desenterro uma todos os dias - escavo-a."

"As Ondas"

"... penso que é na mais completa solidão que se produz o melhor."

"As Ondas"

"... a vida emerge do mar, tecendo a sua crista escura."

"Rumo ao Farol"

"Nunca ninguém se mostrara tão triste. Amarga e negra, a meio caminho do fundo, nas trevas, no veio que corria da luz do sol para os abismos, uma lágrima porventura se formava; uma lágrima caía; agitavam-se as águas de lado a lado, recebiam-na, aquietavam-se. Nunca ninguém se mostrara tão triste."

"Um Amor Feliz"

"... a maravilha que deve ser escrever um livro: a invenção dentro da memória; a memória dentro da invenção; e toda essa cavalgada de uma grande fuga, todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadoras, com a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionando, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem outra mais disposta a por amor ser fecundada."

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

"Escuta, Zé Ninguém!"

"Chamam-te «Zé Ninguém!», «Homem Comum» e, ao que dizem, começou a tua era, a «Era do Homem Comum». Mas não és tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles, os vice-presidentes das grandes nações, os importantes dirigentes do proletariado, os filhos da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos. Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado."

domingo, 2 de agosto de 2009

"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio"

"Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçámos as mãos, nem nos beijámos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço."

"Para Além Doutro Oceano"

"Alegra-me às vezes passageiramente pensar que hei-de morrer
E serei encerrado num caixão de pau cheirando a resina
O meu corpo há-de derreter-se para líquidos espantosos
As feições desfar-se-ão em vários podres coloridos
E irá aparecendo a caveira ridícula por baixo
Muito suja e muito cansada a pestanejar"

"Para Além Doutro Oceano"

"Os artistas de circo são superiores a mim
Porque sabem fazer pinos e saltos mortais a cavalo
E dão saltos só por os dar
E se eu desse um salto havia de querer saber por que o dava
E não os dando entristecia-me"

"Tabacaria"

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio. E uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

sábado, 1 de agosto de 2009

"A Relíquia"

"Sócrates é a semente; Platão a flor; Aristóteles o fruto... E desta árvore, assim completa, se tem nutrido o espírito humano!"

"Morte em Veneza"

"... o conhecimento (...) não tem qualquer dignidade ou severidade; é sabedor, compreensivo, indulgente, não tem posição nem forma; tem simpatia pelo abismo, ele é o abismo."

"Morte em Veneza"

"... para um pessoa que está fora de si, não há nada mais detestável do que voltar a si."

"Morte em Veneza"

"... a paixão paralisa o sentido crítico e aceita de bom grado, com seriedade, tudo aquilo que o sangue-frio tomaria humoristicamente ou recusaria impaciente."

"Morte em Veneza"

"Encontrar o repouso na perfeição é o sonho daquele que se esforça por atingir a excelência; e o nada não é também uma forma de perfeição?"

"Morte em Veneza"

"A solidão cria o original, o belo ousado e estranho cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o desproporcionado, o absurdo e o proibido."

"Os Maias"

"... falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «vou ser assim, porque a beleza está em ser assim».
E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado (...). Às vezes melhor, mas sempre diferente."

"O Anticristo"

"O amor é o estado em que os homens têm mais probabilidade de ver as coisas como elas não são."

"O Anticristo"

"O homem é de todos os animais o mais falhado, o mais mórbido, o mais perigosamente desviado dos seus instintos - ainda que, com isto tudo, seja também o animal mais interessante!"

"Tenho uma grande constipação"

"O que fui outrora foi um desejo; partiu-se."

"Grandes são os desertos, e tudo é deserto"

"Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim."