sexta-feira, 5 de agosto de 2022

"Um dia, quando fizeres as contas e descobrires que o 
teu tempo chegou à sua metade, olharás para a frente, 
sem saber se o que vês é sonho

ou realidade. Assim me aconteceu,
e nesse lugar obscuro, em que os instantes se erguiam
como troncos de uma floresta

feita de ponteiros que rodavam na cabeça, sem que os 
pudesse deter, os pensamentos empurravam-me para
longe de mim. Ah,

pensamentos ásperos como feras de que me quis
libertar, correndo à sua frente
até perder a memória do que vivi: amores

antigos, as doces ilusões de quem acredita, ainda, que 
a vida é fértil como um campo de ilusória eternidade.
Agora, nos confins

deste bosque tão obscuro como o destino que perdi, 
uma sombra se ergue, de costas para mim, como se 
não adivinhasse

que sou presença viva, também, agora que o sol se 
ergue, iluminando o rosto desse guardião dos que 
perderam o seu rumo.

«Segue-me», disse, «e abandona as tuas esperanças, 
como despojos inúteis para
a tua caminhada. Esquece quem abraçaste,

quem te fez sonhar, ou esse corpo que um dia 
desejaste, sem nunca o abraçar; e traz contigo os 
versos em que o cantaste.»

Assim o poeta me obrigou a abandonar quem fui, e 
com ele encontrei essa porta que nunca pensei 
transpor, vendo como as almas

desses que esqueci vinham ao meu encontro, num 
vento de imagens, e me abriam os olhos para um rio 
sem fim, sem fonte nem estuário."

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