terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Da Tua Morte

Tenho contado a mim mesma a nossa história. Como juntas fomos conseguindo espantar os males, as incoerências, a doença mental. Por isso, sinto que devo contar a tua história, a tua história vista através da minha (e também da fantasia), da loucura do pensamento.

Depois de combinar tudo quanto me contaste e eu vi, aquilo que os outros me contaram e eu não vivi, as minhas próprias percepções e ilusões, talvez não venha a ser a TUA história, mas, de qualquer maneira, será, ainda, uma história.

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Quando eu era pequenina, e os meus pais tinham de ir trabalhar para ganhar o pão, ficava aos cuidados da minha avozinha. Nós morámos em casa dos meus avós até eu ter, sensivelmente, dois anos. Mas, mesmo depois, continuei sempre a morar por ali, na minha avó. Ela era (é) o meu lugar. Levava-me para todo o lado e contava-me histórias, as quais já não me recordo, pois só tenho recordações imagéticas e auditivas a partir dos 4 anos de idade. Depois, começou a contar-me histórias da família dela.

Mas a nossa história começa muito antes, apenas a conheço a partir da geração da avó da minha avó, ou seja, da minha tetravó. Antes disso, a manta de retalhos que fui ouvindo aqui e ali não me permite organizar um discurso coerente. 

Há muito, muito tempo, a família nortenha da minha avó mudou-se para Angola e por lá permaneceu várias gerações. A avó da minha avó chamava-se Zaida. Zaida era bonita e grave, tinha muito bom senso e solução para quase tudo. Era pragmática e cuidadora. Zaida era a luz da sua Maria da Luz (minha avó).

Mas, que importa tudo isso? Bate-me na memória a nossa despedida (tu saberias, talvez, que era aquele o último momento, o fim da nossa história):

- Filha, foste uma excelente neta. Fizeste tudo… – Disse ela, abanando a cabeça, em gesto afirmativo, com extrema comoção e mostra de amor/gratidão.

- Foste uma excelente avó. – Retorqui, sorrindo e acrescentei ainda, mais uma vez:

- Hoje vais dormir bem.

(Ambas sorrimos e despedimo-nos).


A morte (ou a sua proximidade) confere lucidez aos virtuosos.
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Fico confusa, desorganizada, incoerente e aflita. 
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Fecho os olhos, cerro-os fortemente: estamos de novo juntas, dás-me o braço, apoias-te em mim. Percorremos juntas, caminhando suavemente, os corredores desse hospital, o mesmo onde fui parida. Caminhamos juntas, conversamos, sorrimos.

Abro os olhos e… perdi-te outra vez, não estás aqui, neste quarto, nesta terra, nesta dimensão, aqui já não moras mais. Dói muito perder-te, por isso cerro os olhos novamente.

Lá estamos nós, juntas e sentadas ao fundo do corredor, olhando pelo janelão o mundo que corre. Doem-me as costas e tu passas a tua abençoada mão pela minha espinha e friccionas calorosamente, tudo parece passar. Excepto o teu cancro, o teu cancro pequenino (2,3 cm à data do teu óbito), como em tudo na vida e como nunca gostaste de incomodar ninguém até mesmo o teu cancro era tímido e reservado.
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Estou a começar a esquecer-me de coisas, a linha da memória foi quebrada, os eventos aparecem sem organização, queria lembrar-me mais e melhor, mas estou danificada pela dor, a dor de abrir os olhos, depois de ter estado contigo novamente, e de te perder vezes sem conta, até ao infinito.
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Retomo? Cheguei à tua vida, imensamente preenchida, atarefada e difícil, em 1986. Parece que o avô costumava comprar maçãs para a minha mãe enquanto estava grávida, descascava uma e oferecia-lhe, pois fazia bem. Era a forma de ele cuidar das pessoas, de cuidar de mim, mesmo antes de eu vir ao mundo, pela comida, pela boca.

Contaste-me que quando me viste te apaixonaste por mim, achavas-me muito bonita. Por vezes, pedias perdão a Deus, pois adoravas-me e, devota como sempre foste, acreditavas que só se podia adorar a Deus, tal como está escrito na bíblia. Cuidaste de mim, não como uma filha, uma neta, ou uma criança, mas como eu sei que cuidarias de uma parte de ti, a boa, a saudável, a que desejarias ter, a que estaria cheia de vida e amor. Deste o melhor de ti, nunca ficaste demasiado cansada para mim nem foste preguiçosa, nunca.

Mas, por vezes, a tua mente pregava-nos sustos, enlouquecia-te e, ainda assim, nunca vi ou li outra loucura tão bela como a tua. A melancolia é poesia, mas também é dura, difícil e tornava-te quase inacessível.
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A minha psicoterapeuta fez a seguinte pergunta retórica, perto do fim de uma das nossas sessões: “quem era a sua avó?”. Parece que é isso que vamos descobrindo neste processo enlutado que estamos a fazer. Donde surgem as questões: Quem eras tu? Quem éramos nós? Quem sou eu hoje?

Como se pode explicar, que um sentimento que é relativo a alguém permaneça intacto, mesmo após o seu desaparecimento? Amo-te todos os dias, como sempre te amei toda a tua vida. Amo-te agora, mesmo sem estares aqui para receber esse amor. Não é estranho? Não é inquietante? Amar sem sujeito? Tu, dentro de mim, nunca acabas, jamais. És renovada diariamente. Parece loucura, eu sei.

Quando ficavas ausente, eu acarinhava em mim a esperança, a fantasia e o desejo do teu regresso, da tua força, do teu cuidar. O que é espantoso, é que voltaste sempre, intacta. Era sobrenatural! Por isso, agora, não posso deixar de acarinhar igualmente a esperança, a fantasia e o desejo, é um hábito de décadas, é um ciclo que se reabre em permanência. Como posso agora aceitar o carnal, o finito, o real, o físico? Imaginar-te debaixo dessa terra toda, dentro desse receptáculo de madeira, a apodrecer, a desaparecer mais e mais a cada dia. Como, se tu voltavas sempre? Como, se voltámos sempre a ser felizes juntas? A caminhar de mão dada, de braço dado. Eu sabia sempre onde ir, quando não tinha mais para onde… Tu eras a minha casa, o meu ninho.

O que mais me custa é pensar que talvez nunca tenhas sido feliz. Mas, então, recordo-me do teu sorriso, dos teus braços abertos recebendo-me a cada dia, em tua casa. Então, esse receio esvai-se. Mesmo existindo dor mental, concebo que fomos felizes em muitas ocasiões, intermitentemente.

É agora que, de novo, fecho os olhos…
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Por vezes, tenho sentido um impulso, uma espécie de urgência, em sentar-me, em parar-me. Deixar-me ir, deixar-me enlutar, chorar, sofrer a perda total. Parece-me tão difícil, tão inútil. Convenço-me de que tenho muito para fazer, que não posso mais perder tempo, como tenho perdido ao longo da minha vida, que devo crescer, lutar, tentar ser alguém. Se chorar muito tempo irei ficar com uma dor de cabeça insuportável, que não me deixará dormir bem, o que tornará o dia de amanhã muito penoso. Na verdade, todos os dias têm sido penosos longe de ti, todos. Ultimamente aconteceu-me em alguns dias não ter isso presente em mim, ou seja, consciente em pensamento pensado. Mas isso não anulou nada, isso não fez com que a dor parasse, apenas a amorteceu, como uma droga faz, sem na verdade curar. Da mesma forma que não houve cura para o teu pequeno cancro, nem mesmo com uma operação radical e ousada, penso que não há cura para a dor da tua perda, a minha dor. A minha esperança é poder vir a ter ferramentas para lidar com uma ferida em aberto, constantemente a sangrar, como tu sangraste até à morte.